Dos Alvores ao Século XVIII
Publicado em 07-03-2024
Este trabalho nasce da compilação de um conjunto mais vasto de crónicas produzidas para o Jornal “O Clarim”, da Região Administrativa de Macau, China. As crónicas foram publicadas semanalmente desde 2014 até 2022. O tema central daquelas que se escolheram para a base deste livro assenta na ruptura, na perspectiva das dissidências, das heresias ou dos cismas, na óptica mais generalista dos movimentos de contestação, de debate ou polémica. No arco cronológico que vai dos alvores do Cristianismo até ao século XVIII, o livro centra-se não apenas na Igreja, mas também nas suas reformas ou querelas internas. Depois, em cada reforma surgem novas reformas e debates, de que também aqui se dará conta. O cenário é o Cristianismo nas suas múltiplas divisões e mudanças, não apenas filosóficas, mas também institucionais. Não é um livro sobre religião, no conceito estrito, mas sobre história cultural e das mentalidades a partir da sensibilidade, e de fenómenos religiosos, no Ocidente e na sua matriz cristã. A geografia respeita essencialmente à Europa e às suas extensões culturais e “coloniais”, mas sem eurocentrismos ou prevalências culturais de qualquer nação, povo ou grupo.
O escopo deste conjunto de movimentos, apresentados numa linha cronológica, é o de esclarecer, de forma simples, sem conteúdos teológicos de cariz académico. Antes, apresentam-se de forma explicativa, contextualizada e científica, sem excessos ou devaneios de erudição as referidas crónicas, com um mínimo de edição, para poderem configurar em formato de livro. Este não é mais do que a súmula cronológica, portanto, organizada no tempo e no espaço, de todos esses textos.
Não se entenda o livro como de heresias, nem alguns dos seus conteúdos como tal. Não se parte aqui para uma classificação “negativa” ou de julgamento histórico ou doutrinário das heresias. Nem é um processo inquisitorial, de forma alguma. Entendam-se as heresias e cismas não como desvios, meras rupturas institucionais, não a partir apenas da óptica dita “católica”, mas como debates, como resultado de querelas e discussões, doutrinais, académicas, sectoriais; mas acima de tudo de grupos de pessoas em determinadas épocas e regiões. Muitas heresias, ou intuições desviantes, redundaram em cismas, ou rupturas, excomunhões, reformas e desvios, derivações várias que se tornaram instituições ou experiências corporativas, de grande impacto, ou não. Ou desapareceram, esfumaram-se, desintegraram-se, retornaram às origens, senão mesmo integraram-se noutras experiências.
Muitas vezes se fala destes fenómenos de ruptura, de debate, de crítica que deriva para contestação e daí para algo mais corporativo; inquietações que resultam em crises, ou se resolvem em debates e realinhamentos, forçados ou organizados. Tantas vezes se usam estes conceitos ou alguns dos seus exemplos sem contexto histórico-geográfico, sem enquadramento cultural, político e económico até, sem análise de processos e formas, sem se conhecerem causas e evolução, os “porquês”, e rematando-se com apreciações vagas na forma de dicotomias maniqueístas, quase sempre julgamentos negativos. Uma heresia não é algo negativo em si, embora dependa da perspectiva ou ângulo a partir dos quais a analisamos. Se partirmos de uma perspectiva católica, é algo que tende a ser “negativo”. Mas se a tomarmos como uma reacção em relação a algo, na Igreja ou noutra instituição ou fenómeno religioso, se implicar debate, podemos encará-la como uma face pouco usada de um prisma. Falamos assim de ideias, de concepções que algumas acabaram por se converter em doutrinas contrárias às definições dogmáticas ou verdades da fé da Igreja, ou do que se considera basilar e inquestionável, mesmo noutras confissões.
Não é um livro de religião, repito, mas de história da cultura e das mentalidades, talvez um pouco de história e antropologia religiosas, utilizando estas rupturas e acidentes na linha cronológica das instituições cristãs, como barómetros ou medida do pulso das sociedades desde há dois mil anos até aos alvores da civilização industrial. As divergências nem sempre foram bem aceites, nem sempre foram entendidas dentro da pluralidade e da diferença. Foram mesmo julgadas, em vez de serem interpretadas, analisadas. Sem anacronismos, sem julgamentos nem revisões, importa, pois, conhecer alguns destes marcos fundamentais na concepção religiosa do mundo cristão, na forma como geraram comportamentos, atitudes e valores, como provocaram mudanças na sociedade e mesmo nas estruturas materiais da mesma. Divisões resultantes de rupturas geradas por reformas, como a Protestante a partir do século XVI, mudaram a ética e a moral colectiva da Europa e das suas extensões imperiais; suscitaram tendências históricas, até hoje, conceitos e valores fundamentais implantados em regiões inteiras e transnacionais, na Europa e no Novo Mundo. Numa próxima edição, abordaremos estes fenómenos nas culturas africanas, asiáticas e oceânicas, mesmo no Novo Mundo “pré-contacto” com o Ocidente, porque importa conhecer a globalidade, antes de se perceber a globalização a partir da matriz ocidental, e que é apenas uma matriz.
Heresia é o conceito que suscita mais atenção. Heresia provém do grego haerĕsis (αἵρεσιςi), que significa "escolha" ou "opção". Uma escolha que é como uma linha de pensamento contrária, diferente, do que se define como sistema doutrinal ou pensamento, doutrina, considerado organizado ou ortodoxo. Ortodoxia é a conformidade com os princípios de qualquer doutrina dominante, o caminho que prevalece sobre os outros caminhos. Estes são as doutrinas divergentes, a heterodoxia, termo que advém do grego heteródoxos, "de opinião diferente", que abarca todas as opiniões ou doutrinas que discordem de uma posição oficial, portanto “ortodoxa"...
COMENTÁRIOS
Historiador, professor, investigador e autor, além de consultor e colaborador em publicações periódicas regulares.
