Refletindo sobre a Natureza
Publicado em 22-03-2022
Eis-me aqui de novo. Citando Aristóteles, pleno de sabedoria e razão. Hoje reflectirei sobre a Natureza. Um tema que tem propriedade e sentido em Cortegaça. Afinal, uma harmonia entre o mar e a terra, a agricultura e a floresta, onde o verde manda e o azul reluz. É assim que eu vejo Cortegaça. Uma harmonia de contrários, como dizia Pitágoras, quando queria definir o universo. Mas o Homem não tem tratado bem do mundo, da natureza, que nada faz em vão, afinal, como lembrava Aristóteles há mais de 2 300 anos.
Impunha-se falar da natureza. Depois do impasse, ou vitória de Pirro, da Cimeira COP26, que encerrou no dia 14 de Novembro em Glasgow, na Escócia. Impõe-se, também porque este jornal se publica em Cortegaça. Uma “úbere” terra antiga, como a cunhou Albertino Alves Pardinhas na sua Monografia de Cortegaça (1980), aludindo ao seu povoamento durante a Reconquista Cristã dos séculos IX e X. Povoadores galegos, das terras portucalenses também, demandaram esta porção das Terras de Santa Maria (ou da Feira), pela qualidade da sua natureza, terra e mar, das águas e dos ares, bons como se vê. Joseph-Marie Piel, um estudioso destas paragens, aferia a “abundância de matas de "Castanea sativa" (os soutos), de "Quercus suber" (o sobreiro) e de "Castanea sativa Miller" (o castanheiro), que abundavam em Cortegaça. A toponímia revela essa natureza, essa origem vegetal da denominação. Um outro Autor, Almeida Fernandes, tornado historiador, defendia que a toponímia deriva de "cohorte", que deu "coorte", depois "corte", no sentido de curral, redil, arribana, lugar onde se guardava o gado lanígero ou caprino. Juntando "corte" com os sufixos "ega"+"aça", nasceu o topónimo de "Cortegaça". Será mais discutível esta etimologia, pois o termo latino cohorte remete também para uma subdivisão da centúria (esta da legião), ao nível aproximado do batalhão actual. Mas não se conhece estância de estruturas militares romanas nestas terras de Cortegaça, pela que essa analogia militar cai por terra. Assim, entre as duas teorias, e no sentido deste artigo, a vertente natural e ambiental está evidenciada na raiz do topónimo.
Porque a natureza, a terra, são uma preocupação das gentes de Cortegaça, permitam-me então uma pequena reflexão, à guisa de bosquejo. Em primeiro lugar, como referi já, Cortegaça é uma ode natural à junção de elementos terrestres: mar, vegetação, água doce, atmosfera. Sim, como tantos lugares, mas provavelmente aqui com uma preservação secular que se pode considerar como boa. Com uma harmonia que tornaram a terra aprazível e um remanso de locus amoenus romântico. Que urge continuar a preservar. Afinal, nós próprios somos o que nos cerca. E se nós não preservarmos o que nos cerca, então não nos preservamos a nós próprios. Outra vez, nestas palavras, recordo o sábio espanhol José Ortega y Gasset. Eis um dilema que se impõe nesta bela terra ancestral, como noutras localidades de Ovar, como de Espinho, bem como ao longo da fecunda e alvissareira Ria de Aveiro. Uma região bela, mas que está ameaçada pelo rumo das alterações climáticas, pela acção nefasta do homem.
“É triste pensar que a natureza fala e que o ser humano não a ouve”, lamentava-se Victor Hugo. Melhor não poderia dizer. Os lamentos são crescentes, metamorfoseados, infelizmente, em sinais gritantes, tão evidentes e preocupantes. O mar já formou um areal quase tão grande como o da Figueira da Foz, revelavam-me há tempos. Pois, as calotes polares a derreterem aumentaram o nível das águas do mar. Cortegaça, claro, vê as suas praias recuarem... A mata já não é o que era, ainda que seja uma marca importante do território. Que é imperativo preservar. Porque da conservação da natureza, depende a do homem, lembrando Ortega y Gassett. Além de que, parafraseando novamente Aristóteles, (Em) todas as coisas da natureza existe algo de maravilhoso. Sem dúvida! Tendo em conta as condições de que dispõe e na medida do possível, é a natureza que faz sempre as coisas mais belas e melhores. Perdoem-me as divagações, como dizia Camilo Castelo Branco, mas não podia deixar de lembrar este pensamento do já nosso Aristóteles.
Nesta questão da preservação do homem, impõe-se um pensamento de Séneca, grande filósofo e pedagogo romano, de há dois mil anos, mas tão actual: Se vives de acordo com as leis da natureza, nunca serás pobre; se vives de acordo com as opiniões alheias, nunca serás rico. A segunda parte não é tão ecológica, mas não quis abdicar dela, porque é extremamente relevante, também... Sim, penso aqui com Einstein também, que lembrava que é mais fácil mudar a natureza do plutónio do que mudar a natureza maldosa do homem. Enquanto o homem continuar a ser destruidor impiedoso dos seres animados dos planos “inferiores”, não conhecerá a saúde nem a paz. Enquanto os homens massacrarem os animais, [os homens] matar-se-ão uns aos outros. Pois quele que semeia a morte e o sofrimento não pode colher a alegria e o amor. De Einstein, antes, até Pitágoras, de novo, o autor desta reflexão sobre a aniquilação que o homem perpetra sobre o meio, julgando impor-se e dominar, mas semeando ventos...
Um grande médico, organista e filantropo francês, Albert Schweitzer, que terminou os seus dias a cuidar de leprosos no Gabão, numa existência franciscana absoluta e despojada ao extremo, diagnosticava, há quase um século, de forma luminar: O mundo tornou-se perigoso, porque os homens aprenderam a dominar a natureza antes de se dominarem a si mesmos. A interacção com o meio deixou de ser equilibrada, de há muito. E veja-se a pegada que essa imposição de domínio sobre o meio deixou para os vindouros. O tal mar que avança, a floresta que se ressente, o Buçaquinho que resiste, qual metáfora verde do Éden primordial, da prístina Cortegaça de outros tempos.
Cortegaça é uma ínfima peça do puzzle ecológico global. Do português até. Mas para quem é de Cortegaça ou ama a terra, é tudo. Se todas as terras tocarem a rebate e defenderem a sua herança natural, para a poderem deixar aos vindouros, para a fruição continuar, então os tempos podem trazer poentes bonitos de esperança.
Preservar a natureza depende também de uma reavaliação de necessidades. De uma recalibração do que precisamos de facto, sem excessos e depois desperdícios. Gandhi, no seu modo de vida jainista, despojado e de renúncia, recordava, como S. Francisco de Assis há 800 anos, aliás, que todos os dias a natureza produz o suficiente para as nossas necessidades. Se cada um tomasse apenas o que lhe fosse necessário, não haveria pobreza no mundo e ninguém morreria de fome. Porque rico é aquele que sabe ter o suficiente, completo com Lao Tzé, filósofo chinês. Há que mudar paradigmas. Demócrito até dizia que O animal é tão ou mais sábio do que o homem: conhece a medida da sua necessidade, enquanto o homem a ignora.
Todavia, não se consegue a mudança por milagre. Nem do dia para a noite. Mas com esforço, sacrifícios. O grande sábio português Agostinho da Silva, apontou um caminho: A única revolução definitiva é a do homem se despojar de cada uma das propriedades, que o limitam e que acabarão por o destruir, propriedade de coisas, propriedade de gente, propriedade de si próprio. É talvez radical, mas é um caminho, quiçá...
Para a reversibilidade do que se tem feito ao mundo, ainda possível, terá que se repensar a economia global e o uso e distribuição de recursos. Temos que ouvir a natureza, ler os sinais (evidentes e gritantes), ou acabaremos, perante um dos ocasos tão belos deste outono, a gritar como Munch no seu quadro “O grito”... Sim, estes ocasos são belos, mas onde está a chuva que tanto necessitamos?
A natureza é o único livro que oferece um conteúdo valioso em todas as suas folhas (Johann Goethe). Não se pode desperdiçar nenhuma folha. Ou matamos o livro!
A COP26 acabou por ser um esboço de progresso nesta luta. Porque a China, a Índia, os EUA e a União Europeia, grandes poluidores planetários, comprometeram a promessa global de eliminação progressiva dos combustíveis fósseis. Depois, as nações ricas recusaram-se a apoiar financeiramente os mais pobres a enfrentar a crise climática. Queria ser optimista, mas só estas duas conclusões da COP26 causam-me alguns calafrios. Além disto, o acordo sobre as novas regras do mercado de carbono acabam por ser promissoras, com a criação de um regime de comércio estruturado entre países, mas a linguagem não é suficientemente clara para impedir que as empresas contornem esses princípios... Até 2025, por outro lado, os países desenvolvidos terão que duplicar os seus fundos colectivos para uma adaptação à mudança climática. Mas tal não proporcionará os biliões necessários para o financiamento da adaptação de que os países mais pobres necessitam. Embora seja uma grande melhoria no estado do “financiamento climático” actual. Com efeito, hoje em dia apenas cerca de um quarto do financiamento climático é aplicado nessa adaptação, sendo que a maioria dos recursos ainda é empregue na mitigação dos efeitos da crise do clima. Um equilíbrio político e financeiro necessário, mas complicado. Nesta avaliação mais técnica, recordo ainda que em Glasgow se decidiu que todos os principais emissores de carbono – e cada um deles – serão obrigados a, em 12 meses, explicar à ONU como as suas políticas e planos nas suas economias estão alinhados com os objectivos gerais para combater o aquecimento global dos Acordos de Paris (2015). Ou seja, manter o aumento da temperatura média mundial o mais abaixo possível dos 2° C, se possível menos de 1,5° C. Metas, para lutar. Para pensar e agir. Por Cortegaça, por todos, pelo mundo. Porque
Não existe grandeza onde não há simplicidade, bondade e verdade.
(Tolstoi)
[quem pretender algum esclarecimento ou elaborar alguma questão, crítica, reparo ou correcção, o meu email: vitor.teixeira@usj.edu.mo ]
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Historiador, professor, investigador e autor, além de consultor e colaborador em publicações periódicas regulares.
