Artigo 1 (Janeiro 2022)
Publicado em 23-03-2022
Já alguma vez pensou em tal cenário? Sem ir à praia, ou deleitar-se nos prazeres campestres, ter frio e vestir-se como se estivesse em Janeiro? Pois é, já aconteceu, em 1816, mas não só... Um ano sem Verão, a natureza “ao contrário”, dir-se-ia. Hoje muito se fala em alterações climáticas, vulcões, o “tempo doido” que se sente no Verão, ou o calor de Inverno... Mas um ano sem Verão, já imaginou?
O que é que acontece então quando um grande vulcão entra em erupção, que podemos qualificar como catastrófica? Como é que tal cenário poderá afectar o clima global? É por isso que o famoso "ano sem verão" de 1816 nos dá que pensar. E já agora, usemos a arte, a literatura, como forma de tentarmos conceber o que foi esse ano...
“A primavera começou fria e os dias quentes contavam-se pelos dedos de uma mão. Foi a partir de Maio que os efeitos se tornaram mais evidentes. No oeste da Europa e no nordeste da América do Norte, as geadas ainda persistiam no final daquele mês [Maio], afectando até as raízes de algumas lavouras. A população dos estados de Massachusetts, Maine, Nova Inglaterra, Nova York e Vermont, nos Estados Unidos, não parou de se surpreender com o registo de nevadas entre 5 e 10 de Junho. 30 cm de neve foram acumulados na cidade de Quebec (Canadá)”, assim escreveu o físico Benito Fuentes, no blog da Aemet. Não, não é uma ficção, mas sim uma descrição meteorológica de 1816, “o ano sem verão”.
Vejamos a história, os factos. Em 5 e 10 de Abril de 1815, o Monte Tambora, um vulcão localizado em Sumbawa, no arquipélago da actual Indonésia, então sob domínio neerlandês, entrou numa erupção repentina e violenta. Tratou-se de uma explosão ultra-pliniana. Caro leitor, cumpre explicar que existem vários tipos de explosões vulcânicas: a “havaiana” (ex.: Kilauea, Hawai); stromboliana (de Stromboli, vulcão italiano); pliniana (erupção do Monte Vesúvio em 79, descrita por Plínio o Novo: também Pinatubo, Filipinas, 1991 e Monte Stª Helena, EUA, 1980, a terrível mega-erupção de Krakatoa, 1883); vulcaniana (do monte Vulcano, Itália, ou de Montserrat, 1995); peleana (monte Pelée; Martinica, 1902, a “nuvem ardente”); subglacial (sob o gelo ou glaciares, como o Tuya Butte, Col. Britânica, Candá); e hidromagmática (vapor explosivo; vulcão Taal, nas Filipinas, em 1965, e a actividade de 1975-1976 em La Grande Soufrière, Guadalupe).
Voltemos a Tambora, meados de Abril de 1815. Tratou-se de uma grande explosão, de facto, que lançou enormes nuvens de poeira e cinzas na atmosfera. Mais de 12 000 pessoas morreram nas primeiras 24 horas, principalmente por causa da queda de cinzas e fluxos piroclásticos. Foi como Pompeia, em 79, mas muito pior, com maior violência, o que só de comparar, assusta. Além dessas fatalidades imediatas, outras 75 000 pessoas morreriam de fome e doenças após aquela que foi a maior erupção em mais de 2 000 anos. Milhões de toneladas de cinzas vulcânicas e 55 milhões de toneladas de dióxido de enxofre subiram a mais de 25 quilómetros na atmosfera. Fortes correntes de vento carregaram as nuvens de gotículas espalhadas para o oeste, circulando por toda a Terra em apenas duas semanas. Dois meses depois, esses materiais estavam já em ambos os polos. As finas partículas de enxofre permaneceriam suspensas no ar por anos. No Verão de 1815 e ao longo de1816, um véu quase invisível de cinzas cobriria a maior parte do planeta, senão todo... O manto translúcido a envolver a Terra reflectia, deste modo, a luz do sol, que não chegava normalmente ao solo. Assim, as temperaturas baixaram e surgiram estragos em todo o mundo. Assim nasceu o infame "ano sem verão", 1816.
Os pesquisadores conseguiram verificar que a gigantesca nuvem de partículas e de gases na atmosfera bloqueou a luz do sol e produziu três anos de arrefecimento planetário. Atingiu a estratosfera, uma nuvem de dispersão de gotículas que reduziria ainda mais a quantidade de energia solar a chegar à atmosfera. Se já no Verão de 1815 se observava no céu "uma estranha névoa avermelhada que mal se dissipava", no Verão do ano seguinte as consequências tornaram-se evidentes e inegáveis. Não, não foi uma vingança divina, mas a erupção de um vulcão.
Todavia, o impacto total do arrefecimento de todo o planeta, por causa do cataclismo de Tambora, não seria apercebido durante um ano. Os anéis de crescimento dos carvalhos europeus constituem uma das evidências do impacto do fenómeno. A dendrocronologia (método científico de datação da idade de uma árvore baseado nos padrões dos anéis no tronco) é clara: o ano de 1816 foi o segundo mais frio no Hemisfério Norte desde 1400! Mas para os amantes de atmosferas tipo “O Grito”, de Munch, para os artistas paisagistas e veduttistas, o cenário dos ocasos vermelhos e alaranjados, ou os nasceres do sol, era sublime e inspirador. Até a cinzenta e nublada Londres se pintou de poentes magníficos, paletas cromáticas vivas e fulvas! O céu, dizia-se então, "exibia fogo em alguns lugares".
Mas também outras evidências assustavam, de acordo com os relatos que nos chegaram. Por exemplo, na Primavera de 1816, a neve ainda persistia no nordeste dos Estados Unidos e no Canadá, e o frio chegava até ao cálido e sulista Tennessee. O tempo gelado durou até Junho, a tal ponto que em New Hampshire era praticamente impossível arar a terra. Ainda naquele mês, o ar frio e fora da estação soprou para o sul, para as quentes Carolinas. Em 6 de Junho, uma tremenda tempestade caiu sobre Quebec, no Canadá. Os pássaros morreram congelados nas ruas duas semanas antes do solstício de Verão. No Maine, as sementeiras primaveris murcharam nos campos, devido a "uma geada muito forte". Rebanhos inteiros de ovelhas morreram de frio. Numa época em que a ciência meteorológica séria ainda não existia, os devotos diziam que as tempestades traziam "a própria letra de Deus" e eram um símbolo da ira divina.
A Europa também tiritou de frio durante aquela Primavera húmida e mais fria do que o normal. Devido à magreza da colheita cerealífera, registaram-se motins na França por causa do alto preço do pão. As perdas de colheita do "Ano sem verão" podem também ter ajudado a moldar a colonização dos EUA, já que muitos milhares de pessoas (principalmente famílias de fazendeiros que foram dizimadas pelo evento) deixaram a Nova Inglaterra rumo ao oeste, em busca de um clima mais hospitaleiro, solos mais ricos e melhores condições de cultivo. Indiana, por exemplo, tornou um estado em Dezembro de 1816 e Illinois dois anos depois. Vermont, um estado do Nordeste dos EUA, perdeu população. Um dos que abandonou o estado devido às dificuldades geradas pelo ano sem Verão, foi Joseph Smith. Quem é? O fundador dos Mórmons. De facto, além de ter acrisolado inquietações apocalípticas e escatológicas, aquele Verão suscitou respostas na forma de novos sentimentos religiosos, como o da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, baseada no Livro de Mórmon, transcrito por Smith.
Mas os artistas também não ficaram alheados do fenómeno. Aliás, são cruciais para o seu entendimento. Recordemos alguns factos. Mary Wollstonecraft Godwin, a mulher do poeta inglês Percy Bysshe Shelley, viajou para o Sul, através das montanhas do Jura, até Genebra, na Primavera. O passeio na carruagem puxada por cavalos foi terrivelmente frio, com "flocos de neve grandes, grossos e rápidos". Mary e Percy estabeleceram-se numa villa (a villa Diodati) isolada nas margens do Lago de Genebra, onde deram as boas-vindas ao jovem poeta Lord Byron. Por lá já estava John William Polidori, médico e amigo do grupo. Mas a estada tornou-se deprimente, devido ao clima... atmosférico. Narram que ainda houve alguns dias lindos, mas na maior parte do tempo, simplesmente choveu e fazia frio. "Os trovões estouravam terrivelmente nas alturas", observou Mary. As temperaturas na Europa Ocidental estavam bem abaixo da média, ventos fortes sopravam e chovia, chovia... (continua)
Monte Pinatubo (Filipinas)
Constable, Weymouth Bay with Approaching Storm, 1816
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Historiador, professor, investigador e autor, além de consultor e colaborador em publicações periódicas regulares.
