Belo lugar de um drama silencioso
Publicado em 25-01-2023
Introdução
Quem lá vai, não vai por causa das carquejeiras. Mas quem lá for, acabará por descobrir o drama silencioso e silenciado destas mulheres. E alguém lá for, é melhor descer do que subir a partir do rio Douro. A rampa tem um declive de 21 % e uma extensão de c. 220 metros. Não é um destino comum, nem é até publicitado, muito menos referenciado turisticamente pela sua história. Apenas surge como um lugar que conecta partes da cidade do Porto. Depois de se estar por ali perto, é impossível não dar com a rampa, tortuosa, impiedosa, parece que as suas pedras ainda lamentam e choram os dramas que dão sentido histórico ao espaço. Depois, ao darmos com a escultura da Carquejeira, uma memória tridimensional de uma história silenciada, cai então sobre nós uma mórbida memória, revestida de uma tristeza inquietante. Afinal valeu a pena vir ali. Muitos acabam por descer a rampa e ir olhando para trás… imaginando a inclemente e empedrada inclinação, pensando naquelas “mulheres-ouriços” a subir e descer, como lhes chamou Hélder Pacheco, trovador do Porto.
E o conceito do “dark tourism” surge então, não na origem e categorização do espaço e da visita, mas antes nos efeitos da descoberta acidental do lugar e no desvendar da sua história. A partir daqui, gera-se a romagem - mais nacional e essencialmente portuense -, àquela calçada, carrasco natural, mal lajeado, de tantas vidas, espoletador de tantas lágrimas, verdugo de sonhos vergastados por sofrimento. Porque muitas vezes, só calcorreando uma cidade, voluntária ou acidentalmente, como o Porto, é que nos apercebemos dos seus mistérios, glórias, tristezas, dos seus fantasmas e memórias, muitas vezes só assim realizamos as suas controversas atribulações sociais.
É assim a antiga Rampa das Carquejeiras, antigamente da Corticeira, no Porto, lugar de memórias que se descobrem quando deparamos com o arruamento, declivoso e rude, como lugar de murmúrios das mulheres que ali sofreram, das vidas que se consumiram vergadas pela pobreza. Neste estudo recordaremos o lugar, a sua história, a condição humana que se desvela em cada drama existencial e do que o turista, o visitante, ali encontra. O turista que ali vai só apreende o drama depois da descoberta do lugar, de forma acidental ou integrada em outro percurso. Mas o cenário e a sua memória ajudam a construir a identidade do lugar, como da Cidade que se visita, a sua história, as figuras anónimas de mulheres indómitas e silenciadas: as Carquejeiras do Porto.
Introduction
Who goes there does not go because of the “Carquejeiras”. Nevertheless, whoever goes there will discover these women's silent and silenced drama. Furthermore, it is better to go down than up from the Douro River for someone out there. The ramp has a slope of 29% and a length of 300 meters. It is not a common destination, nor is it even advertised, much less tourist referenced for its history. It just appears as a place connecting parts of Porto's city. After being close by, it is impossible not to see the ramp, which is tortuous and merciless. Its stones seem to mourn still and cry the dramas that give historical meaning to the space. Then, when we come across the statue of “Carquejeira”, a three-dimensional memory of a silenced history, a morbid memory falls upon us, coated with a disquieting sadness. Many end up going down the ramp and looking back, imagining the inclement and cobbled slope, thinking about those "hedgehog women" going up and down, as Hélder Pacheco, the Porto troubadour, called them. After all, it was worth coming there.
The concept of "dark tourism" arises then, not in the origin and categorisation of space and visit, but rather in the effects of the accidental discovery of the place and in the unveiling of its history. From here, the pilgrimage is generated - more national and essentially from Porto - to that sidewalk, a natural executioner, poorly paved, of so many lives, the trigger of so many tears, killer of dreams whipped by suffering. Because often, it is only by walking around a city, voluntarily or accidentally, like Porto, that we realise its mysteries, glories, sadness, ghosts, and memories, often only in this way do we recognise its controversial social tribulations.
“Rampa das Carquejeiras”, formerly “Corticeira”, in Porto, is thus a place of memories discovered when we come across the street, steep and rude, as a place of murmurs of the women who suffered there, of the lives that were consumed by poverty. In this study, we will remember the site, its history, the human condition revealed in each existential drama, and what the visitor finds there. The tourist who goes there only apprehends the drama after discovering the place, either accidentally or as part of another route. But the scenery and memory help build the site’s identity, the visited city, its history, and the anonymous figures of indomitable and silenced women: the Carquejeiras of Porto.
Justificação e conceptualização
Este estudo da Rampa das Carquejeiras insere-se na categoria de estudos de Turismo do Touring Cultural e Paisagístico. Se considerarmos que esta tipologia é caracterizada por descobrir, conhecer e explorar os atractivos de uma região, podemos incluir este percurso e a sua memória nessa categoria. Este tipo de viagem suscita procura em áreas com forte componente de oferta cultural associada à tradição, valorizada pela oferta de autenticidade, registando uma procura crescente em cidades de média dimensão, rodeadas por paisagens naturais. A artéria em apreço insere-se nessa tipologia, ganhando sentido histórico e cultural a partir da invocação da memória daquelas mulheres.
Neste exemplo da Corticeira não temos um “dark tourism” à primeira vista. O espaço não se vê como tal nem se visita por isso, mas descobre-se na sua fruição e na narrativa histórica revelada. A motivação não é do dark tourism mas acaba por ser naquele espaço à medida que se conhece a narrativa da história do lugar. É uma espécie de micro-turismo resultante de uma visita que tem um sentido cultural e de procura de memórias e histórias. A partir da descoberta das Carquejeiras, o conceito de “dark tourism” surge e referencia a visita. É um turismo de experiências, uma das variáveis do “Dark Tourism”.
Segundo Richards (2011), podemos integrar outra característica do “dark tourism”: a criatividade. Esta encontra-se integrada no turismo através de pessoas criativas, lugares, produtos e processos. Como refere Richards (2011), o turismo criativo pode ser visto como um desenvolvimento do turismo cultural, uma vez que surgiu a necessidade de inovar essa área. Assim, a memória deste lugar resulta da criatividade inferida na abordagem cultural da rua, dando sentido a um “dark tourism”.
O “dark tourism” é também um turismo de experiências. Jong (2014) afirma que proporcionar aos turistas novas experiências é fulcral para o sucesso de um destino turístico e é isso que o torna mais competitivo e distintivo em relação aos demais. A inserção de espaços de “dark toursm” no conceito global do turismo do Porto potencia essas experiências. A fruição do lugar da Corticeira / Carquejeiras reforça o Porto como um destino turístico de fortes experiências e memórias, do ponto de vista histórico e cultural. De acordo com Tung & Ritchie (2011), para um destino turístico ser memorável, identificam-se quatro dimensões que permitem ao indivíduo reter aspectos da experiência: afecto, expectativas, consequência e recordação. Qualquer uma destes aspectos é aferido numa visita a este lugar, a partir da experiência do mesmo. Stone (2006) afirma que “Dark Tourism” é o acto de viajar para locais associados a morte, sofrimento e macabros, aparentemente. Esta vertente tanatológica (morte) – do conceito de thanatourism de Seaton (1996) -, não está patente directamente no caso em estudo. Assim, se pensamos, a partir de Henderson (2000) e Lennon & Foley (2000), que o “Dark Tourism” oferece duas experiências distintas - a emocional e a educacional -, podemos então relacionar este espaço da Corticeira e as Carquejeiras com esse tipo de turismo. Existe uma aura de fatalidade, ainda que não fosse o objectivo ou o enquadramento directo do lugar. Mas as tragédias ocorriam, a tragédia humana de uma vida difícil e áspera. Por isso, a fruição e experiência do lugar a partir da memória das Carquejeiras pode enquadrar-se na categorização de “dark tourism”.
Justification and theoretical framework
This study of “Rampa da Corticeira / Carquejeiras” falls within Tourism Studies in Cultural and Landscape Touring. If we consider that this typology is characterised by discovering, knowing and exploring the attractions of a region, we can include this route and its memory in this category. This type of trip generates demand in areas with a solid cultural component associated with tradition, valued for the offer of authenticity, registering a growing market in medium-sized cities surrounded by natural landscapes. The artery in question is part of this typology, gaining historical and cultural meaning from the invocation of the memory of those women.
In this Corticeira example, we do not have "dark tourism" at first sight. The space is not seen as such, nor is it visited for that reason, but it is discovered in its enjoyment and the revealed historical narrative. The motivation is not dark tourism but ends up being in that space as the narrative of the history of the place is known. It is a kind of micro-tourism resulting from a visit with a cultural sense and a search for memories and stories. From the discovery of Carquejeiras, the concept of "dark tourism" emerged and referred to the visit. It is a tourism of experiences, one of the variables of "Dark Tourism".
According to Richards (2011), we can integrate another characteristic of "dark tourism": creativity. Creativity is integrated into tourism through creative people, places, products and processes. As noted by Richards (2011), creative tourism can be seen as a development of cultural tourism since the need to innovate in this area has arisen. Thus, the memory of this place results from the creativity inferred in the artistic approach of the street, giving meaning to "dark tourism". "Dark tourism" is also experienced tourism. Jong (2014) states that providing tourists with new experiences is central to a tourist destination's success and makes it more competitive and distinctive from others. Including "dark tour" spaces in Porto’s global tourism cconcept enhancesthese experiences. The enjoyment of the place of Corticeira / Carquejeiras reinforces Porto as a tourist destination with solid backgrounds and memories from a historical and cultural point of view. According to Tung & Ritchie (2011), for a tourist destination to be memorable, four dimensions are identified that allow the individual to retain aspects of the experience: affection, expectations, consequence, and remembrance. These aspects are assessed in a visit to this place, based on its expertise. Stone (2006) states that "Dark Tourism" is the act of travelling to plasitessociated with death, suffering and the macabre. This thanatological aspect andd – from Seaton's concept of thanatourism (1996) - is not directly evident in the case under study. Thus, if we think, based on Henderson (2000) and Lennon & Foley (2000), that "Dark Tourism" offers two distinct experiences - emotional and educational -, we can then relate this space in Corticeira and Carquejeiras to this type of tourism. There would be an aura of fatality, even if it were not the place's objective or direct setting. However, tragedies did occur, the human tragedy of complex, rough life. Therefore, the enjoyment and experience of the place from the memory of Carquejeiras can fit into the categorisation "dark tourism".
Contexto e história
Poucos conhecem a história, mesmo que conheçam o lugar. A história que falamos é a das Carquejeiras . O seu trabalho e sofrimento, quando conhecidos, criam uma memória do lugar e suscitam uma visita com outra perspectiva. Estas mulheres foram autênticas heroínas, tendo desempenhado um trabalho quase “escravo”, de grande sofrimento e sem protecção. Eram mulheres que transportavam a carqueja que era transportada em embarcações que desciam o Douro. Os molhos de carqueja eram descarregados na margem direita, no Porto, perto da embocadura da rampa das Carquejeiras / Corticeira, mesmo perto da ponte Luís I. A carqueja era transportada em molhos de c. 30 quilos em média, senão mais . Tinha como destino os fornos das padarias da cidade (desde a Foz até Paranhos), além de ser utilizada também no aquecimento de casas ricas. É importante recordar também que foi importante para o funcionamento dos fornos da indústria de biscoitos e panificação de Valongo.
A carqueja, Genista tridentata, refira-se que é uma planta da família das Fabaceae, comum no Norte e Centro de Portugal, nas áreas montanhosas. As suas flores (que despontam entre Março e Junho) são também muito apreciadas na preparação de infusões e na culinária (para o arroz de carqueja, por exemplo).
Era a carga que aquelas mulheres frágeis, exploradas e sem direitos, que subiam e desciam sem hesitar a íngreme e agreste calçada, em troca de um parco salário para o sustento das suas famílias. Foram vividos autênticos dramas humanos naquela ascensão granítica, de lajes geladas, de formas e tamanhos irregulares, quando não escaldantes, sujas e cortantes, num percurso austero com uma inclinação de 21 graus, onde nenhum animal andava ou podia puxar carroça e carregar tal fardo. O trabalho só podia ser feito por humanos, a baixo salário e sem condições: a miséria imperava, a desigualdade de género e a ausência de direitos cívicos nas mulheres ainda mais gritante era, pelo que a sorte de tal carga lhes caiu nas costas. A recusa seria a carência, mesmo de uns parcos escudos e quiçá o grilhão da fome a apertar mais. Inclemente, o quotidiano, como o seu destino, atirava as pobres mulheres para aquele serviço, numa falsa dignidade que apenas existia por as tirar de outras formas de sustentação que nas ruas e de noite as aguardava. Em vez desse destino e da fome, sua e dos seus, as Carquejeiras subiam carregadas e muitas vezes desciam para mais carregar, além de calcorrearem ainda mais caminhos, nas veredas da aflição e na tragédia. Nesta íngreme desumana calçada, o humano – ou o feminino – tomou o lugar dos muares e asnos. Ou seja, o trabalho que a “besta” não podia fazer, ficou para os mais fracos e sem direitos, as mães e filhas da aflição, que agarravam toda a oportunidade de dignamente ganharem algum dinheiro.
O ciclo histórico das Carquejeiras decorreu de 1928 até 1951 . A paisagem à volta era linda, para onde quer que elas se virassem, mas a indiferença causada pelo sofrimento, debaixo do sol, da chuva, com calor ou ao frio, ano após ano, naquelas centenas de metros, por vezes grávidas, ou com os filhos ao colo, em debilidade e esforço, impunha a realidade cruel daquela rota de sofrimento. Foram muitos anos de trabalho e esforço, a troco de parcos rendimentos, para os habitantes de uma Cidade que só ao fim de décadas e depois do fim daquele inglório serviço, começaram a entender e considerar a triste condição daquelas mulheres…
A funesta ladeira hoje em dia denomina-se de Calçada das Carquejeiras, desde 1992, homenagem que a Câmara Municipal do Porto fez àquelas mulheres. O nome antigo era “Calçada da Corticeira”. Estas mulheres, pobres, todas elas curvadas de carqueja, começavam a sua viagem não muito longe da ponte Luís I e levavam-na à Foz, a Paranhos, ao Marquês e até à Boavista, Antas, Carvalhido, mal alimentadas, regressando a pé. Distribuíam-na por toda a cidade, mas o caminho tormentoso, duro, impensável, aviltante, a etapa de esforço mais cruel, começava mesmo ali junto ao cais onde os barcos rabelos despejavam a carqueja que elas transportavam pela calçada das Carquejeiras acima. Sucumbir ao peso e esforço era o mais certo, cair era por isso inevitável, mas era imperativo fintar o destino e enganar a miséria.
À noite estavam-lhes reservados os “carinhos” de compensação de muitos casamentos e lares da época: os maus-tratos, por maridos ébrios e violentos, que descarregavam fúrias e inebriações nas mulheres e filhos. Estas mulheres, além desse mísero e violento trabalho, tinham a responsabilidade e a preocupação dos filhos, no contexto familiar da época. Delas provinha muitas vezes o sustento dos lares, muitas eram abandonadas por maridos e enfrentavam as maiores agruras da sociedade da época, machista e violenta. A sociedade não as ajudava muito também, afinal sempre tinham “trabalho”. A caridade esqueceu-se também muitas vezes da miséria destas mulheres, que antes de tudo sofriam também por serem mulheres e mães . Vivia-se também numa fase de grande disseminação do alcoolismo na sociedade, com muitos lares fulminados por este drama. A falta de apoios sociais era outro drama, as crianças não tinham estruturas de enquadramento e ocupação de tempos livres, antes de começarem a idade escolar. A escola era também alvo de fuga de muitas crianças, o que alimentava outros dramas sociais. Muitas destas mulheres eram também analfabetas. Os apoios sociais não existiam. As próprias crianças eram vítimas da situação das mães. Pai ausente, quando presente era muitas vezes violento, com forte espectro alcoólico, tudo pesava sobre as mulheres: além dos fardos de carqueja, o fardo familiar e a factura social eram também opressivos. Há aqui heroísmo nesta mulheres, bravura e estoicismo, coragem e silêncio abnegado. A sociedade, como as instituições caritativas, a Igreja por exemplo, não despertaram muito para este drama nem moveram esforços no sentido de o mitigar, pelo menos. Mesmo as outras mulheres da cidade, aquecidas pela carqueja nas suas lareiras e pelo pão das padarias onde as Carquejeiras depositavam os seus fardos, nada fizeram de especial por estes seres humanos.
O drama
O calor, o frio e a fome, as más condições e o enquadramento social e laboral ajudam a perceber o drama destas mulheres. As doenças profissionais, como as enfermidades femininas, a tuberculose, a pobre alimentação, os problemas psíquicos, os filhos e os lares, o regresso a casa, são os matizes que tonalizam ainda mais o drama. Subir e descer a calçada e cumprir o resto do percurso podiam não ser as piores partes desta miséria humana, desta pobreza extrema. Mas ainda está por avaliar a pior face desta experiência penosa e continuada: a indiferença da sociedade, ou o egoísmo social .
Aquele lugar de memória está ali, no Porto. Numa cidade de trabalho, tão afectiva e generosa, cidade da liberdade e dos direitos dos cidadãos, viveu-se durante muito tempo com esta forma de escravidão humana, de uma servilidade de género tão ignóbil. Este calvário terminou nos anos 60 do século XX, como vimos, quando as carquejas deixaram de ser necessárias nas padarias, nas carvoarias, cerâmicas, quando a electricidade e o gás passaram a incinerar e queimar.
Aquela ladeira, talvez a mais íngreme rampa do Porto, entre as pontes Luís I e D. Maria, a ligar a margem do Douro à parte alta da cidade, na zona das Fontainha, perdeu então aquele bulício, aquelas mulheres curvadas com os molhos pesados às costas. Do ponto de vista turístico, estamos numa zona de memória de experiências, numa área genuína da cidade, onde ainda se respira o Porto antigo, das vielas e calçadas, sujas e gastas, entre o velho casario, que serpenteia na escarpa até ao rio de mau navegar, o mais americano dos rios da Europa, o Douro, como lhe chamava o Barão de Forrester. As casas simples do velho burgo portuense ainda dominam, alheias ao sofrimento de outrora, de outros tempos, mas onde os seus habitantes teimam em ali viver, geração atrás de geração.
Uma zona do Porto, uma grande cidade turística, que aos poucos vai sendo descoberta pelos turistas mais exploradores que querem ir além das atrações turísticas mais conhecidas e que se arriscam a subir a Calçada das Carquejeiras, na certeza de que lá em cima vão encontrar uma vista fantástica para o rio Douro, as suas pontes e o Mosteiro da Serra do Pilar, na outra margem em Vila Nova de Gaia, a encimar a encosta por onde se espalham as caves do vinho do Porto. Depois, para lá de toda esta bela vista, encontramos por lá marcas de outros tempos como as ruínas da Capela do Senhor do Carvalhinho, pertencente à antiga Quinta do Fraga que ali existia desde o séc. XVI . Ou a Fábrica de Cerâmicas Carvalhinho, uma das grandes indústrias de cerâmica do Porto, que ali tinha o seu núcleo fabril.
E para além de toda essa experiência de paisagem, de cultura, temos as experiências afectivas que brotam da história que se nos revela na descoberta do lugar. Poucos turistas o sabem, ou saberão até, como a maior parte dos moradores do Porto e arredores, que no meio daquela história e paisagens, corre o murmúrio silêncios do drama daquelas mulheres que por tão pouco, tanto sofreram naquela calçada. Vida dura, de muita resistência, de trabalho árduo das mulheres que por ali subiam, com fardos que chegavam aos 50 quilos, que descansavam um pouco nas Fontaínhas – onde está a escultura de José Lamas, erigida em 2020, em homenagem às Carquejeiras - para depois seguir para o destino do molhe que carregavam. Um recanto do sofrimento, de onde se contam histórias de mulheres que ali davam à luz em plena jornada de escalada e de esforço. Outras passavam mal, padeciam de tantas mazelas que se acrisolavam com a crueldade do todo que era aquele miserável trabalho. Uma verdadeira luta por uma sobrevivência já de si árdua e penosa, em que mulheres de todas as idades trabalhavam daquela forma. Sem folgas nem férias. A carqueja era a sua vida, e por vezes a razão de um fim prematuro. Estas "Mulheres-escravas", dobradas pelo peso da carqueja e da sua condição social, calcorreavam calçadas, ruas, vielas e ruelas da cidade do Porto, percorrendo distâncias de cinco quilómetros ou mais, no desempenho de um árduo trabalho que permitia que se cozesse pão, se acendessem fogões a lenha ou se aquecessem as lareiras das casas mais abastadas da cidade nevoenta e fria. Um trabalho duro e desumano, num sacrifício ignorado e esquecido de "super-mulheres" de antigamente, como tem sido recordado.
No topo da calçada, junto ao Passeio das Fontainhas, eis a placa toponímica verde que anuncia o nome. Subir é mais fácil, para muitos, mas para todos seria penoso se carregados com a carga de carqueja, curvados e descalços, famintos e em sofrimento, repetindo diariamente o trajecto nestas condições. Descer pode ser perigoso, pela inclinação, pelo empedrado difícil e irregular, mas não custa tanto, pois faz-se sempre sem carga.
Do ponto de vista da paisagem envolvente, o rio Douro é a referência, como o casario de Guindais e a Muralha, Gaia do outro lado – o mosteiro e igreja da Serra do Pilar -, as pontes metálicas do Douro e as caves do vinho do Porto. No fundo da descida, surge a Avenida de Gustave Eiffel. Há ainda alguns murais bonitos a entrecortar a paisagem, gatos e alguns cães que por ali andam diletantemente. E há muitas pedras, muitas, de dimensões variáveis, formatos sem regularidade, por vezes acidentados. São pedras gastas e antigas que são uma memória de uma cidade que não desapareceu assim há tanto tempo. De um lugar difícil, de momentos duros, de figuras em sofrimento, um lugar tenebroso nas histórias que dele se contam.
“As desgraçadas passam, com os enormes feixes às costas, arfando e resfolegando, pela ladeira acima. Assisto à escalada torturante dum calvário que não tem fim. Sobre os muros da rampa, os ouriços humanos depõem, de vinte em vinte metros, os carretos”, descrevia um jornalista de Lisboa d´O Século, que andava a descrever o modo de vida e quotidiano nas ilhas do Porto, pasmando-se com o espectáculo terrível daquelas mulheres. As críticas também soaram por vezes, mas não acordaram a indiferença reinante.
O lugar é importante no turismo. Sem ele, como objectivo, é difícil existir turismo. Se lhe juntarmos histórias, memória, ganha sentido e atrai atenções. Atrai ainda visitantes, aliás… Neste caso , era um enigma a denominação de “Corticeira”. Germano Silva refere que não há nada escrito a documentar a sua origem. Refere mesmo Eugénio de Andréa da Cunha e Freitas na sua "Toponímia Portuense", ao aludir a alcunha ou a profissão de algum morador da zona, ou por proximidade do cais onde os rabelos que vinham do interior descarregavam a cortiça, quando não sugerindo a hipótese de ali ter funcionado alguma fábrica ou oficina que trabalhasse a cortiça. Silva refere que na mais antiga planta da cidade (1813) já vem mencionada uma rua da Corticeira. O mesmo Autor alude a uma pequena capela, em ruínas, sensivelmente a meio da ladeira, que classifica como a antiga "via dolorosa" das carquejeiras que a subiam vergadas ao peso dos enormes molhos de carqueja que iam vender na cidade, palmilhando c. cinco quilómetros diários com aquele peso. O povo, recorda Germano Silva, já apelidava a calçada, naquele tempo, de "calçada das Carquejeiras".
A capela fazia parte de uma antiga casa nobre, que por ali existiu, numa propriedade chamada Quinta da Fraga, que fora brévia (casa de repouso ou férias) dos Jesuítas, que até 1758 – data da sua extinção em Portugal – tinham colégio e casa professa nas instalações do actual Seminário Maior do Porto, anexo à igreja de S. Lourenço (vulgo “dos Grilos”). Extintos do Reino de Portugal, abandonaram todas as suas propriedades, como esta Quinta da Fraga e respectiva capela. Estas afrrruinaram-se, devido à falta de cuidados e manutenção. Na época da revolução liberal de 1820 a propriedade já se chamava Quinta do Carvalhinho, sendo o seu dono António Joaquim Soares. Esta figura remete para histórias incríveis, por provar, como o facto de encerrar a esposa, por castigo, em celas subterrâneas na casa da propriedade. Germano Silva refere que a quinta do Carvalhinho, com o solar, capela, hortas, jardins, pomares, etc., foi adquirida por Tomás Nunes da Cunha e António Monteiro Catarino em 1840. Estes novos proprietários instalaram então uma fábrica de cerâmica que tomou o nome de fábrica do Carvalhinho. Depois vem a lenda, a partir das “estórias” populares sobre o antigo proprietário e os seus desmandos matrimoniais, em relação ao tratamento dispensado à mulher. Assim, no tempo da fábrica, os operários diziam “ouvir” os gemidos da mulher do antigo proprietário da quinta, António Joaquim Soares, quando ela pretendia libertar-se de uma coluna, à qual estava amarrada…pelos cabelos.
Outra notícia exarada por Germano Silva, foi a de que em 28 de Junho de 1846, na ressaca das escaramuças da Patuleia, um indivíduo, "vestido com decência, sobrecasaca e chapéu de castor", se suicidou atirando-se do penedo da Corticeira às águas do rio Douro. Lugar de mau agouro era já a rampa, de fantasmas… Depois, no mês seguinte (25 de Julho), deu-se que "pelas duas horas da tarde dois galegos tinham ido tomar banho no rio Douro, no sítio da Corticeira" e um deles terá ali morrido afogado. Mas se há estes indícios tenebrosos, o lugar teve também efeitos bem contrários, pois rezam os jornais da cidade a 27 de Março de 1900, por exemplo, que naquele lugar morrera o trabalhador Custódio de Sousa, que "vivia em precárias circunstâncias na ilha do Caçador, à Corticeira". Não seria o único, nem motivo de notícia, infelizmente. Mas a razão da mesma prende-se com a idade do senhor na hora da morte. Nada mais nada menos que 108 anos! Apesar das dificuldades, a rampa da Corticeira era um lugar também de vida.
No ano da República (em 15 Março, de 1910, portanto), deu-se a mais retumbante notícia sobre a Corticeira. Um "double-phaeton" Ford, de 20 cavalos, já com 10 000 quilómetros, lança-se na subida da íngreme calçada, cujo percurso venceu em apenas 35 segundos, segundo os jornais da época. Além deste feito e das lendas e estórias, o local era também ponto aprazível nas festas de S. João, com iluminações e fogo preso, além de tão perto das Fontaínhas, o coração da grande festa portuense.
A completar a memória do lugar e sua relação com as histórias dolorosas que aqui elencámos, no dia 1 de Março de 2020 foi inaugurado o monumento às Carquejeiras do Porto, na forma de uma escultura de mulher executada pelo artista José Lamas (Maia, n. 1947) e promovida pela Associação de Homenagem às Carquejeiras do Porto, que desde 2015, na liderança entusiástica de Arminda Santos, tudo fez pela memória daquelas mulheres de sofrimento. Foi “um drama silenciado durante muito tempo”, mas finalmente plasmado em obra evocativa, para que as gerações futuras se recordem do que neste lugar se passou ao longo de várias décadas do século XX. O enquadramento é o da Alameda das Fontainhas. A imagem está sobre um plinto em betão com uma base inclinada, a simbolizar a íngreme calçada que sobe desde a Avenida Gustavo Eiffel, representando uma mulher (“Maria”) de bronze a carregar aos ombros um molho de carqueja, maior do que o seu corpo. Punhos firmes, roupa colada ao corpo banhado em suor, rosto seco e duro, magro, eivado de sofrimento, pose de esforço, de calvário humano, de flagelação corporal imposta pelo fardo pesado. Como se fosse uma metáfora da vida da pobre mulher, “Maria a Carquejeira”…
Conclusão
Dureza, desumanidade, indiferença social, sofrimento, tantas são as palavras que nos assistem na memória deste lugar que se descobre depois da identificação da figura da Carquejeira, realista na dimensão iconológica, mas também na aparência visual primária. A imagem aponta para o local da memória, reflectindo na pose e na representação artística a experiência do lugar, das infinitas viagens de subida com aquele fardo ao longo dos mais de 200 metros, nas condições referidas. É coo um clímax de um lugar bonito, mas mórbido e trágico na memória, nas histórias e nos silêncios amordaçados pela dor da violência daquele infame esforço, mal pago e repetido de forma cruel, a troco de uma existência precária. Ao mesmo tempo, a tragédia denuncia a sociedade daquele tempo, de indiferença, alheamento ao sofrimento, de uma falsa alteridade, onde nem as instituições religiosas, municipais ou do Estado alguma vez despertaram para aquele triste “espectáculo” e socorro daquelas mulheres e suas famílias, para mitigar o sofrimento silencioso. Denuncia a falta de instrução, as diferenças sociais, a inexistente acção social, enfim, remete para uma caridade de fachada que alimentava a miséria e vivia do sofrimento. Um pagamento miserável resolveria as inquietações das consciências abaladas? Um pagamento proporcional à distância e ao número de viagens percorridas, que podia ir de um escudo e cinquenta centavos até aos 15 escudos, segundo o jornalista Armando Gonçalves . Abel Salazar e Aurélia de Sousa, que viram estas mulheres no seu árduo e penoso labor, pintaram-nas, manifestando inquietação e revolta perante uma das mais bárbaras profissões de que há memória em Portugal no século XX.
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